O vazio na ponta do lápis: o que a IA tira de nós?

IA escrita AdobeStock

Em nosso mundo de comunicadores, a Inteligência Artificial não é mais uma promessa distante, é uma realidade. No Brasil, essa onda chegou com força total: somos o terceiro país do mundo em uso de IA, com mais de 140 milhões de interações diárias apenas no ChatGPT. Esse dado mostra que a conversa sobre IA na comunicação corporativa não é teórica; ela está acontecendo agora, “dentro de casa”, com uma intensidade que exige reflexão.

Nesse cenário, percebemos o encantamento de quem se aventura em um mundo “AI first”, em que a promessa é a otimização total de processos e o aumento exponencial da produtividade.

Questionar a ascensão da IA pode ser considerado um ato de resistência ou uma atitude até retrógrada, quase um eco nostálgico de um passado analógico. O escritor Sergio Rodrigues capta a essência dessa promessa radical ao afirmar que “em poucos anos ninguém mais precise escrever mais nada se não quiser”. Segundo ele, o “imenso fardo de encaixar uma palavra depois da outra, que já foi chamado com felicidade de ‘o trabalho braçal da mente’, terá sido tirado das costas da nossa espécie depois de alguns milhares de anos.” É um cenário tentador, que nos leva a um futuro onde o trabalho pesado da redação seria coisa do passado.

Mas, para muitos de nós, esse encantamento convive com o desconforto. Gostar de criar, de sentir o ritmo das palavras, de ver uma ideia ganhar corpo na tela, é parte intrínseca da nossa paixão. Quando a conversa se resume a “o que delegar à IA” ou “como fazer o prompt perfeito”, sentimos um vazio. Diogo Cortiz, pesquisador de novas mídias, nos alerta para um perigo sutil: a IA, por sua funcionalidade de sempre tentar cumprir a tarefa, “não exige necessariamente um pedido mais complexo que demandaria mais imaginação e criatividade dos usuários. Logo, a repetição, a perda da autenticidade e o perigo das “histórias únicas” – que tanto debatemos na academia e nas organizações – ficam ainda mais latentes.”

O desconforto não se limita à criatividade. É um sentimento que permeia as discussões sobre nosso valor e a real necessidade de autoria. Onde estão os debates sobre os medos legítimos das pessoas, sobre a perda de empregos e a empregabilidade de diferentes gerações que já convivem no mercado de trabalho, sobre um país como o nosso em que questões básicas como a fome e a alfabetização ainda não foram totalmente solucionadas? Às vezes, ao levantarmos essas questões éticas e sociais, soamos reativos, como se estivéssemos defendendo um tempo e um espaço que, na visão de alguns, deve ser inevitavelmente ocupado por algoritmos.

É aqui que entra o letramento necessário. A alta adesão à IA no Brasil, em contraste com a baixa compreensão do seu conceito e de seus impactos, nos mostra que a educação é urgente. O caminho, como aponta Lucia Santaella, não é o deslumbramento apaixonado nem o ceticismo defensivo. É a temperança. “Não conheço outro caminho a não ser a educação — não a educação voltada meramente para a obtenção de um bom emprego, mas a educação para a vida.” A verdadeira competência não está em usar a ferramenta, mas em entender suas possibilidades e limitações, seus vieses e, acima de tudo, em ter a intenção e a capacidade de fazer as perguntas certas. A IA pode criar, sem dúvida. Mas a maestria reside em nossa capacidade de orientar, de refinar, de injetar contexto e senso crítico. Afinal, a dependência excessiva de ferramentas como o ChatGPT, Gemini, CoPilot e tantas outras pode levar a uma “atrofia cognitiva”, prejudicando o pensamento crítico, o raciocínio e a autenticidade.

Em um mundo onde a informação é produzida em alta velocidade, o valor do comunicador não está mais em sua capacidade de produzir cada vez mais e ainda mais rápido, mas em sua habilidade de pensar devagar e com profundidade. A escrita, que nunca foi neutra, agora exige de nós ainda mais intenção. A grande questão não é o que a IA pode tirar de nós, mas sim o que ela exige que nos tornemos para continuarmos relevantes: mais estratégicos, mais humanos e mais críticos do que nunca. Exatamente como provocou a executiva Viviane Mansi recentemente em um congresso: “a grande questão não é o tempo que a IA irá nos poupar. Isso já está dado. A grande questão é o que faremos com esse tempo que irá nos sobrar”?

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