Educação em risco: o perigo da empregabilidade como meta

Uma das lembranças da minha infância é ver os meus pais preparando slides para as inúmeras aulas que eles davam a seus alunos dentistas. Na época, não havia a facilidade de usar ferramentas digitais como o powerpoint. O processo era artesanal: após revelar os slides no laboratório fotográfico e organizá-los dentro do carrossel da Kodak, eles projetavam para ver se tudo estava em seu devido lugar. O que mais me chamava a atenção nesse ritual um tanto quanto curioso era a dedicação dos meus pais em fazer algo que precisava de tanto empenho. Eram horas e horas de preparação.
Não sei precisar quando aconteceu, mas um belo dia eu entendi o motivo de tanta dedicação para fazer aquelas aulas: ensinar é uma missão de vida. E, a partir desse momento epifânico, o sonho de ensinar passou também a fazer parte da minha história. Quero compartilhar tudo que venho estudando e me dedicando no trabalho. Nos últimos anos, fui convidada a dar aulas em diferentes cursos, geralmente em disciplinas que conectam comunicação e sustentabilidade, minhas áreas de interesse e conhecimento.
Infelizmente, nos últimos tempos, os convites que recebi como docente não se converteram em aulas efetivas. A resposta sempre é a mesma: “infelizmente, não houve quórum suficiente de inscritos e o curso foi cancelado”. Ao receber cada novo “não”, o sentimento de frustração aumentava. Até que cansei de me lamentar e fui tentar entender o está acontecendo. Conversei com pessoas próximas que revelaram problemas parecidos. Cursos que eram realizados há anos com sala cheia, ultimamente enfrentaram dificuldades para atingir o número mínimo de alunos.
No ano passado, após 14 anos trabalhando na mesma empresa, resolvi desbravar novos caminhos. Queria fazer duas grandes mudanças na minha carreira: focar o meu trabalho na área de sustentabilidade e mudar de setor de atuação. Fiz o que me parecia mais sensato: estudar para aumentar as chances dessa transição de carreira dar certo. Comecei a fazer – de forma concomitante – um MBA e um mestrado, ambos em instituições de ensino de renome.
Nos inúmeros processos seletivos que participei, a impressão é que não fazia a mínima diferença os cursos que estou fazendo. As equipes de seleção sempre perguntavam sobre certificados de setores em que eu não trabalhei. Geralmente, essas certificações de sustentabilidade são bastante específicas e caras, e quem as possui já trabalha na área. Percebi que, no checklist dos recrutadores, a instrumentalização é hipervalorizada. Além disso, uma pesquisa do Instituto Locomotiva mostrou que a vantagem salarial das pessoas que tem diploma universitário reduziu significativamente. Em 2003, a diferença média era de R$ 5.194 e, em 2023, passou para R$ 3.117.
Se o mercado não valoriza os estudos como antigamente, como convencer alguém que vale a pena dedicar recursos financeiros e de tempo em algo que não vai trazer resultados concretos? Para aumentar a complexidade desta equação, há o avanço e a presença ostensiva da inteligência virtual (IA) generativa. Uma das frases que mais escuto no trabalho ou na faculdade é: “joga na IA”. No entanto, é importante ter a consciência de que a IA não é uma panaceia. Na palestra de abertura do evento Aberje Trends deste ano, destacou-se a limitação que essa tecnologia tem em lidar com temas complexos. Ou seja, pensar de forma crítica ainda é e será muito importante.
A precarização do mercado de trabalho veio intensificar ainda mais a criticidade deste cenário. Com a demissão de profissionais mais experientes para o recrutamento de jovens talentos, houve a necessidade da contratação de consultorias para suprir a necessidade de expertise a custos mais baixos. Muitos profissionais se tornaram empreendedores de si mesmos e precisam, por questões de subsistência, se diferenciar nesse mercado extremamente competitivo. O Linkedin passou a ser o palco de postagens de feitos tão incríveis em que temos dificuldade de identificar o que é de verdade e o que é de mentira.
Os tempos não são fáceis. Os retrocessos em temáticas de extrema relevância para a humanidade, como direitos humanos e sustentabilidade, se agravam a cada dia. Precisamos repensar a educação apenas como forma de aumentar a empregabilidade. A educação é peça-chave para dar perspectivas e vencer a desesperança, as opressões e as múltiplas outras formas de violência. A construção de alicerces firmes para uma sociedade mais justa, igualitária e de paz é feita, obrigatoriamente, a partir da educação.